A alienação fiduciária sob o enfoque do Marco Legal das Garantias
Em 30/10/2023 foi publicada a Lei 14.711/2023, também chamada de “Marco Legal das Garantias”.
A nova legislação possui como propósito facilitar a recuperação de crédito em todo o Brasil e, com isso, diminuir o custo dos juros e a inadimplência.
Para tanto, o Marco Legal das Garantias fez significativas alterações na Lei 9.514/97, que versa sobre a disciplina legal da alienação fiduciária de bens imóveis.
Dentre as alterações promovidas está a inclusão do parágrafo 3º, no artigo 22 da Lei que regulamenta as alienações fiduciárias, o qual disciplinou a operação de alienação fiduciária da propriedade superveniente.
A alienação fiduciária da propriedade “superveniente” ocorre quando o devedor fiduciante, possuindo a expectativa de que irá receber de volta a propriedade do imóvel com a extinção do primeiro contrato de alienação fiduciária compromete essa “propriedade futura” em garantia de nova dívida sobre o mesmo imóvel.
A possibilidade de se realizar essa operação antes era controversa, pois os Cartórios de Registro de Imóveis negavam seu registro na matrícula do bem, o que era essencial à publicidade do ato. Referidas negativas geralmente se justificavam na ausência de previsão legal para referida operação.
Para não restar mais dúvidas acerca do tema, o Marco Legal das Garantias determinou que tal modalidade de alienação fiduciária trata de operação passível de registro no Cartório de Registro de Imóveis, conforme alteração no art. 22, §3º da Lei das Alienações Fiduciárias.
A possibilidade de registro em cartório da alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente garante maior segurança jurídica à operação, pois confere publicidade ao ato, resguardando os direitos de terceiros.
Nos termos da lei, referida garantia de propriedade superveniente torna-se eficaz, automaticamente, após o cancelamento da anterior.
Outra alteração promovida pelo Marco Legal das Garantias consiste na autorização para se realizar múltiplas, ou nas palavras da lei, sucessivas operações de alienação fiduciária sobre o mesmo bem imóvel.
Ao contrário das alienações supervenientes, cuja eficácia da segunda alienação implica na extinção da primeira, as alienações múltiplas ou sucessivas coexistem concomitantemente.
Isso significa dizer que, se o bem for avaliado em R$ 350.000,00 e a dívida do imóvel somar R$ 50.000,00, será possível valer-se do saldo remanescente do imóvel (R$ 300.000,00) para dar em garantia em outros empréstimos.
Referida operação não era prevista no texto legal alterado, pelo que se entendia não ser possível sequer de registro perante o Cartório de Registro de Imóveis.
Esses dois institutos introduzidos no ordenamento jurídico pátrio pela Lei 14.711/23 foram propostos com a intenção de eliminar o capital morto contido no imóvel financiado, representado pelo valor atual do imóvel, em comparação com o importe residual da dívida financiada.
Essa diferença de valores representava um capital não utilizado, o qual agora poderá circular no mercado, em razão da viabilização das sucessivas alienações fiduciárias sobre um mesmo imóvel, bem como da alienação fiduciária de propriedade superveniente, sobre a qual também poderá haver sucessivas alienações.
Ao promulgar tais medidas, a consequência esperada pelo Poder Executivo seria o aumento da concorrência bancária, com a consequente diminuição do custo dos juros, devido à ampliação da oferta de garantias no mercado.
Vale mencionar que a garantia obtida com a alienação fiduciária é extremamente robusta e vantajosa para o credor, considerando que o imóvel é transferido para a propriedade do credor fiduciante. Além disso, em caso de inadimplência, tal garantia é passível de execução extrajudicial, a qual se mostra extremamente célere em comparação com as execuções judiciais.
De todo modo, também se espera com tudo isso a diminuição da inadimplência, pois, com taxas de juros menores, diminui-se o valor da parcela do financiamento, aumentando a possibilidade do pagamento pontual da dívida. Nesse sentido foi a manifestação do Ministério da Fazenda do governo atual, segundo o qual: “Os impactos esperados com a implementação da medida são a ampliação do acesso ao crédito, a redução das taxas de juros e a melhoria do ambiente de negócios, através de maior segurança jurídica, aperfeiçoamento das regras e melhor utilização de garantias”[1].
Em oposição a esse pensamento, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) acredita que a consequência de referidas medidas seria, na verdade, o aumento do endividamento das famílias brasileiras.
Isso porque os consumidores brasileiros, em sua maioria, não teriam a educação financeira necessária e desejada para o manejo dessa ampliação do acesso ao crédito. Dessa forma, ao estimular o uso do crédito sem planejamento financeiro e com o apelo da redução da taxa de juros, as famílias correm um grande risco de perderem o imóvel dado em múltiplas garantias.
Acreditamos que ambas as versões encontram seu ponto de acerto, pois se de um lado é possível um aumento do acesso ao crédito aos consumidores, sem a devida educação financeira, também é verdade que ao menos as instituições financeiras, por regras estipuladas pelo Bacen[2], possuem limites e critérios para a concessão de crédito, tendo por regra a necessidade de uma cuidadosa análise de crédito do consumidor, a fim de evitar a sua inadimplência.
Para tanto, o Banco Central do Brasil prudentemente alterou sua Resolução 4.676/2018 pela Resolução 4837/2020, vedando no seu artigo 17, §2º, a contratação de novos empréstimos e financiamentos com taxas de juros superiores ao da operação original, ou com prazos mais amplos do que os remanescentes da operação original.
Obviamente tal regulação não atinge todas as operações de alienação fiduciária sobre bens imóveis, uma vez que se destina unicamente a regular o comportamento das instituições financeiras sobre referido assunto.
Com efeito, qualquer pessoa física ou jurídica pode figurar como credor na alienação fiduciária sobre bens imóveis, pessoas essas que não estão vinculadas ao sistema financeiro nacional e que, portanto, podem operar sem a limitação imposta pelo Bacen.
Entretanto, as instituições financeiras lideram o mercado de financiamento de imóveis, atingindo um percentual maior de cidadãos brasileiros, mostrando-se irrelevante para fins estatísticos as operações realizadas por outras entidades, como construtoras e incorporadoras.
Desse modo, conclui-se que o próprio mercado nacional, já extremamente regulado e protecionista, irá, ao analisar o crédito pessoal de um possível devedor, barrar eventuais sujeitos que representem maior probabilidade de inadimplência.
Portanto, o Marco Legal das Garantias estabelece diversas fontes de acesso ao crédito, promovendo com isso o desenvolvimento do setor imobiliário e o aperfeiçoamento do arcabouço legal das garantias.
[1] https://www.metropoles.com/brasil/economia-br/governo-anuncia-13-medidas-para-estimular-credito-e-reduzir-juros
[2]Chrome extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://normativos.bcb.gov.br/Votos/CMN/202072/Voto_0722020_CMN.pdf